Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

caixa dos segredos

Bocados de mim embrulhados em palavras encharcadas de emoções. Um demónio à solta, num turbilhão de sensações. Uma menina traída pelas boas intenções.

07
Set14

Resultados das candidaturas à universidade


vanita

Há 18 anos não havia Internet. Para se ter uma noção, que podia estar errada, sobre os resultados das candidaturas, além das dores de barrigas - que já existiam - comprava-se o jornal no domingo anterior à afixação dos papéis definitivos na capital de cada distrito. Não sei se têm ideia, a capital de distrito pode ficar a muitos quilómetros de casa. Ora bem, como estava a dizer, há 18 anos comprei o Diário de Notícias - devo assinalar o facto de que neste dia os jornais esgotavam no País inteiro? - e lá fui, avidamente, procurar no suplemento de colocação no ensino superior as notas finais de acesso em cada um dos seis cursos a que me tinha candidatado. Já falei nas cólicas emocionais e intestinais? Tudo isto era um processo lento e cheio de ansiedade. No meu caso, para rentabilizar o tempo - ainda faltavam umas boas horas para ir a Leiria no dia seguinte - optei por ver cada uma das notas no sentido inverso às minhas opções com a diferença de dez a vinte minutos entre cada. Não queria gorar as expectativas demasiado cedo. Eu era boa aluna, uma das melhores da turma e tinha uma média bastante razoável. O problema é que concorri apenas a cursos em Lisboa, onde as notas de acesso eram proibitivas. Na altura, odiava Lisboa e tudo o que menos queria era uma vida académica numa cidade impessoal, enorme, caótica de trânsito e poluição. Concorri para Lisboa porque, como tinha família na cidade, em termos ecónomicos seria a única solução viável para seguir os estudos. Assim, as minhas seis opções para Jornalismo e Comunicação Social deixaram de parte cursos e escolas que ainda estavam a dar os primeiros passos e onde, com a minha média, teria sido uma das primeiríssimas colocadas. Sabem aquelas pontadas que nos deixam enjoadas? Foi assim que, um a um, vi morrer os meus sonhos. Nenhuma das notas finais estava dentro da minha média. Nenhuma. Havia até uma, para Sociologia do Trabalho, que distava apenas meio valor percentual. Meio valor. Foi a esta esperança que me agarrei quando na segunda-feira me levantei às seis da manhã para ir com a minha mãe e as minhas melhores amigas verificar os papéis oficiais, com os nossos nomes. A euforia era geral e contrastava como um iogurte azedo num estômago vazio com a minha redoma de tristeza e apatia. Sonhei toda a vida com este dia e o meu pior pesadelo, que nunca considerei sequer possível, estava a acontecer. Eu, aluna de alto gabarito, não tinha entrado na faculdade. Não era possível! Eu não tinha entrado. Naquela altura, eu não chorava. Guardava os nós na garganta com força, fazia-me imune e engasgava-me na dor. As lágrimas teimosas correram num esgar que disfarcei muito mal. Não queria que as minhas amigas me vissem chorar. Não queria que a minha mãe percebesse a minha desilusão, não aguentava confrontá-la com o meu falhanço. Mas foi o que aconteceu. Por mais que olhasse para a vitrine, aquelas letras não mudavam. Não houve nenhum decreto de última hora e os ruídos de satisfação à minha volta eram ensurdecedores. Não colocada. E parecia que toda a gente nesse ano tinha conseguido um lugar em qualquer lado, até pessoas com médias negativas. Tanta gente com média negativa. Estava-se a assistir ao boom dos politécnicos e aquele foi o primeiro ano de candidatura ao ensino superior já depois da reforma educativa. Assistia-se a uma democratização no acesso ao ensino superior e eu fiquei de fora.

 

Foram quase dois meses de angústia e depressão. Fiquei a trabalhar numa fábrica de calçado onde já tinha estado nas férias de verão. Sim, na altura havia trabalho suficiente para quem queria fazer uns trocos durante as férias e a hipótese de ir para uma universidade privada não cabia no orçamento familiar. Maldisse todos os dias que passei nessa fábrica e jurei que não podia acabar assim, que ia lutar com todas as minhas forças pelo sonho de ser jornalista. Ao mesmo tempo lidava com o afastamento das minhas amigas, que foram experimentar as suas vidas novas noutras terras, conhecer outras pessoas e viver outras realidades. E com o meu irmão que, vendo-me desorientada, me criticava por ter o sonho de ir para a universidade, que isso em si não é sonho que se tenha, que teria que ter um objectivo mais claro do que isso. E tinha: queria ser jornalista. E fui. Concorri às escassas 300 vagas libertadas para a segunda fase - só para terem ideia de como ficaram preenchidas as vagas na primeira fase. Não havia lugares para Comunicação Social, mas existiam vagas para Línguas e Literaturas - o meu sonho B - e para cursos que me dariam acesso a Comunicação Social a partir do terceiro ano no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa. Informação preciosa que não tive quando concorri na primeira fase. Pus uma cruzinha em todos os cursos dessa escola, e marquei os restantes para outras terras, que tinha preterido na primeira fase por razões económicas. A minha média era altíssima para aquela fase mas, jogando pelo seguro, pus as fichas toda na última opção. Línguas e Literatuas - Variante de Grego, em Coimbra. Havia duas míseras vagas, mas pediam exame de Latim - e éramos tão poucos com esse exame, e eu tinha tido uma das notas mais altas a nível nacional. Estava no papo. Iria para Coimbra estudar Literatura e seria imensamente feliz. Entrei para a primeira opção, para Lisboa, fiz-me jornalista como estava ditado desde que nasci e fui muito feliz. Por isso, mesmo que os resultados de hoje não sejam mais animadores, não desistam. O mundo não acaba hoje.

17 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub