Resultados das candidaturas à universidade
vanita
Há 18 anos não havia Internet. Para se ter uma noção, que podia estar errada, sobre os resultados das candidaturas, além das dores de barrigas - que já existiam - comprava-se o jornal no domingo anterior à afixação dos papéis definitivos na capital de cada distrito. Não sei se têm ideia, a capital de distrito pode ficar a muitos quilómetros de casa. Ora bem, como estava a dizer, há 18 anos comprei o Diário de Notícias - devo assinalar o facto de que neste dia os jornais esgotavam no País inteiro? - e lá fui, avidamente, procurar no suplemento de colocação no ensino superior as notas finais de acesso em cada um dos seis cursos a que me tinha candidatado. Já falei nas cólicas emocionais e intestinais? Tudo isto era um processo lento e cheio de ansiedade. No meu caso, para rentabilizar o tempo - ainda faltavam umas boas horas para ir a Leiria no dia seguinte - optei por ver cada uma das notas no sentido inverso às minhas opções com a diferença de dez a vinte minutos entre cada. Não queria gorar as expectativas demasiado cedo. Eu era boa aluna, uma das melhores da turma e tinha uma média bastante razoável. O problema é que concorri apenas a cursos em Lisboa, onde as notas de acesso eram proibitivas. Na altura, odiava Lisboa e tudo o que menos queria era uma vida académica numa cidade impessoal, enorme, caótica de trânsito e poluição. Concorri para Lisboa porque, como tinha família na cidade, em termos ecónomicos seria a única solução viável para seguir os estudos. Assim, as minhas seis opções para Jornalismo e Comunicação Social deixaram de parte cursos e escolas que ainda estavam a dar os primeiros passos e onde, com a minha média, teria sido uma das primeiríssimas colocadas. Sabem aquelas pontadas que nos deixam enjoadas? Foi assim que, um a um, vi morrer os meus sonhos. Nenhuma das notas finais estava dentro da minha média. Nenhuma. Havia até uma, para Sociologia do Trabalho, que distava apenas meio valor percentual. Meio valor. Foi a esta esperança que me agarrei quando na segunda-feira me levantei às seis da manhã para ir com a minha mãe e as minhas melhores amigas verificar os papéis oficiais, com os nossos nomes. A euforia era geral e contrastava como um iogurte azedo num estômago vazio com a minha redoma de tristeza e apatia. Sonhei toda a vida com este dia e o meu pior pesadelo, que nunca considerei sequer possível, estava a acontecer. Eu, aluna de alto gabarito, não tinha entrado na faculdade. Não era possível! Eu não tinha entrado. Naquela altura, eu não chorava. Guardava os nós na garganta com força, fazia-me imune e engasgava-me na dor. As lágrimas teimosas correram num esgar que disfarcei muito mal. Não queria que as minhas amigas me vissem chorar. Não queria que a minha mãe percebesse a minha desilusão, não aguentava confrontá-la com o meu falhanço. Mas foi o que aconteceu. Por mais que olhasse para a vitrine, aquelas letras não mudavam. Não houve nenhum decreto de última hora e os ruídos de satisfação à minha volta eram ensurdecedores. Não colocada. E parecia que toda a gente nesse ano tinha conseguido um lugar em qualquer lado, até pessoas com médias negativas. Tanta gente com média negativa. Estava-se a assistir ao boom dos politécnicos e aquele foi o primeiro ano de candidatura ao ensino superior já depois da reforma educativa. Assistia-se a uma democratização no acesso ao ensino superior e eu fiquei de fora.
Foram quase dois meses de angústia e depressão. Fiquei a trabalhar numa fábrica de calçado onde já tinha estado nas férias de verão. Sim, na altura havia trabalho suficiente para quem queria fazer uns trocos durante as férias e a hipótese de ir para uma universidade privada não cabia no orçamento familiar. Maldisse todos os dias que passei nessa fábrica e jurei que não podia acabar assim, que ia lutar com todas as minhas forças pelo sonho de ser jornalista. Ao mesmo tempo lidava com o afastamento das minhas amigas, que foram experimentar as suas vidas novas noutras terras, conhecer outras pessoas e viver outras realidades. E com o meu irmão que, vendo-me desorientada, me criticava por ter o sonho de ir para a universidade, que isso em si não é sonho que se tenha, que teria que ter um objectivo mais claro do que isso. E tinha: queria ser jornalista. E fui. Concorri às escassas 300 vagas libertadas para a segunda fase - só para terem ideia de como ficaram preenchidas as vagas na primeira fase. Não havia lugares para Comunicação Social, mas existiam vagas para Línguas e Literaturas - o meu sonho B - e para cursos que me dariam acesso a Comunicação Social a partir do terceiro ano no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa. Informação preciosa que não tive quando concorri na primeira fase. Pus uma cruzinha em todos os cursos dessa escola, e marquei os restantes para outras terras, que tinha preterido na primeira fase por razões económicas. A minha média era altíssima para aquela fase mas, jogando pelo seguro, pus as fichas toda na última opção. Línguas e Literatuas - Variante de Grego, em Coimbra. Havia duas míseras vagas, mas pediam exame de Latim - e éramos tão poucos com esse exame, e eu tinha tido uma das notas mais altas a nível nacional. Estava no papo. Iria para Coimbra estudar Literatura e seria imensamente feliz. Entrei para a primeira opção, para Lisboa, fiz-me jornalista como estava ditado desde que nasci e fui muito feliz. Por isso, mesmo que os resultados de hoje não sejam mais animadores, não desistam. O mundo não acaba hoje.