O pedaço de história que nos está reservado
vanita
Todos os dias me lembro das senhas de alimentação de que a minha avó falava. Portugal não entrou na guerra mas a população sentiu a miséria na pele. Sempre ouvi esses relatos entre o fascínio de ter à minha frente uma prova viva de uma realidade histórica e o horror de imaginar como seria viver com açúcar e pão contados. Era criança mas nunca me esqueci e, nestes dias, é só do que me lembro. Ainda não escrevi uma linha sobre estes tempos de quarentena e isolamento social, sobre esta ameaça que se abateu sobre nós. A apatia assusta-me mas não consigo reagir, é como se estivesse em negação. Toda a vida lamentei não fazer parte do colectivo dos grandes feitos da história, sempre senti ânsias da adrenalina que se depreende da luta por causas e do espírito de união. Queria fazer parte de algo grandioso e comunitário, algo que se sobrepusesse ao ego e à mesquinhez dos dias. Escrevi-o tantas vezes mas, agora que o covid-19 surge com ganas de forjar o nome nos livros de história, percebo como fui ingénua. Somos impotentes perante o rumo dos acontecimentos, não passamos de meros espetadores com olhos postos num palco longínquo mas tangível, onde a ação nos faz lembrar as senhas de alimentação de outros tempos. Há muitas teorias sobre doenças e pragas em inícios de século, períodos de recessão económica e dizimação das populações. Não acredito em coincidências nem sei se estaremos mais bem preparados para enfrentar este desafio. Não consigo pensar. Sei apenas que a nossa vida, aquela que está à distância de um braço bem esticado, não nos será devolvida tal como a conhecíamos. Este é o pedaço de história que nos está reservado. E não é nada como imaginava.