À procura da manhã clara
vanita
Nós, os filhos que Zeca Afonso chamou da madrugada, nascemos e crescemos em Liberdade e, até à pandemia de 2020, ainda não tínhamos sofrido na pele as agruras de um desafio maior. Não fomos à guerra, tivémos a sorte de nos ser garantida uma educação escolar mínima e, até, de sermos os primeiros de muitas gerações a ingressar no ensino superior em algumas famílias. Fossem só rosas e seríamos uns mimados. Mas nós, os filhos da madrugada, também somos os inauguradores dos estágios curriculares e trabalhos de borla anos a fio até conseguir um, prometido e poucas vezes conseguido, lugar no quadro empresarial. Foi a nós, aos filhos da liberdade, que se prometeram vidas nunca conquistadas, salários nunca alcançados, promessas sempre veladas. Os empréstimos sem juros nem obrigações chegaram antes de nós. Quando foi a nossa vez, sem rendimento fixo, nem valores que permitissem deixar as marmitas em casa ou trocar os transportes públicos por um carro próprio, tivémos que nos arrastar em quartos alugados, nunca nossos, ou quedar em casa dos pais até ao limite do absurdo. As tais carreiras ambicionadas geraram uma dedicação profissional ao nível yuppie que hipotecou vidas familiares, sempre adiadas. Com vencimentos aliciantes apenas para as entidades patronais. Aos filhos da madrugada não foi assim tão simples ter filhos, muitas vezes sinónimo de abdicar da carreira para a qual foi incentivado o estudo. Quantas vezes a emigração foi a solução? Tivémos a sorte de nascer e viver em Liberdade toda a nossa vida e, até à pandemia de 2020, não tínhamos sido marcados por um desafio maior. Mas, muito antes disso, apesar de circunscritos à casa dos pais ou arrastados em situações precárias, talvez por isso mesmo, já mostrámos a nossa garra. Ganhamos pouco, não temos progressão de carreira nem que passem vinte anos de experiência, os bancos trucidam qualquer sonho que nos passe pela cabeça e a vida família só tem lugar numa alucinante equação em que só os patrões podem sair a ganhar. Sim, somos filhos da madrugada, mas nunca encontrámos a manhã clara.