Ladrão de sonos
vanita
Cruzava as pernas para não dormir em posição de cadáver. Ficou. Ainda hoje faço isso quando me deito de costas, mãos propositadamente não cruzadas em cima do peito. Sempre foi um suplício ceder ao sono. Adormecia por cansaço a olhar fixamente para as cortinas do quarto, a luz de cima acesa. Não havia luzes de presença mas eu já ansiava por esse conceito. Fechar os olhos era o mesmo que apagar a luz. Era ceder à escuridão, dar rédea solta ao desconhecido, perder o controlo do que me podia acontecer. Quarenta anos depois continuo a ser essa menina que, absorta de cansaço, luta para se manter acordada. Por medo do escuro, dizia eu, que só sabia dizer que era por medo que um ladrão me apanhasse. Mas que ladrão se ninguém entra cá em casa, prometiam os adultos. E eu sem saber dizer que esse ladrão entrava na minha cabeça assim que fechava os olhos. Deixava de ver o que me podia acontecer e isso para mim era uma prisão. Porque não me deixava dormir. Era por isso que dormia, quase em hipnose, quando os olhos se cansavam de fixar as cores e texturas do cortinado. Não era para lá que eu olhava. A minha missão era assegurar-me que, se a janela se abrisse, eu não era apanhava desprevenida. Ainda hoje não consigo dormir de costas para a porta, seja ela qual for. E se alguém entra? Não é medo do escuro, é impedir que o ladrão entre. Enquanto isso, o sono é-me roubado. Desde sempre.