Nasci quatro anos depois do 25 de Abril e andava na escola primária quando Mário Soares assinou os papéis de adesão à CEE. Fui percebendo, conforme fui crescendo, que a minha infância surgiu nos tempos de acalmia após a tempestade. Não havia PREC, nem ditadores, nem lápis azuis, nem fascismo, nem censura. Demorei a entender a quem se referiam quando falavam no Tempo da Outra Senhora. Por muito que os adultos não acreditassem, o 25 de Abril era abordado pela rama em dois minutos nas aulas. Sabia apenas que tinha sido uma revolução e que tinha devolvido algum poder ao povo. Demorei a ter acesso aos pormenores e a todas as vertentes dessa viragem na nossa história. Sim, durante algumas décadas, não se falava abertamente em Salazar, nem no 25 de Abril. Os primeiros livros e séries sobre o tema começaram a surgir quando eu já trabalhava há largos anos. E o fascínio por um povo que luta por ideais era tão grande, que escolhi a revolução dos cravos para tese de mestrado e sempre lamentei o facto de não viver em tempos de lutas sociais e de conquistas por direitos civis. Durante duas décadas, a vida em Portugal era tão calma e sem sobressaltos que ansiava pela capacidade que uniu o povo na mudança de regime. O vazio de ambição e conforto de quem não se preocupa com o mundo para lá do próprio umbigo angustiava-me porque, ao contrário do que possa parecer, apesar de não se viver mal nesses tempos, continuavam a existir clivagens sociais e valores distorcidos. Continuava a haver por que lutar. São incontáveis as vezes que lamentei não ter vivido em tempos mais aguerridos, em que o meu comportamento e a minha determinação pessoal pudessem fazer a diferença. Quase sem darmos por isso, tudo mudou. Vivemos tempos absurdos hoje em dia, assistimos diariamente a um novo holocausto e à ascensão de poderes políticos que limitam as liberdades individuais com base no medo e da repressão, compactuamos com medidas de corrupção e de censura e assentimos em silêncio, como já o tinham feito os nossos antepassados. Ao contrário do que idilicamente imaginava, não há heróis. Quando o mundo desmorona à nossa volta, não pegamos em cravos e restituímos o equilíbrio. A mudança está nas nossas mãos, mas apenas se formos muitos a pensar da mesma forma e, enquanto houver possibilidade de uma das partes sair beneficiada, essa união não irá existir. É preciso descer ainda mais baixo para que todos anseiem pelo mesmo. E ainda estamos longe disso, talvez estejamos apenas no início. Vêm aí tempos tenebrosos e não, não somos todos heróis.