A primeira vez que o meu mundo ruiu
vanita
Eu era boa aluna, sempre fui. O meu caderno servia de exemplo para os inspectores escolares que visitavam a escola primária de tempos a tempos. Esperavam-se grandes coisas dessa menina franzina, pequena e, coisa inacreditável à altura, intolerante ao leite. Embalada neste espírito, cresci com a certeza de podia ser o que quisesse, com a ambição possível de quem vive numa aldeia recentemente elevada a vila, melhor, de quem vive num pequeno lugar dessa pequena aldeia. Nunca me senti realmente integrada e sair dali era a única perspectiva que, em mais dias do que gostaria, me permitia aguentar o bullying dos colegas de turma, uma turma de que fiz parte durante nove longos anos, sem qualquer escapatória possível. Não foi fácil mas aguentei-me e, com a passagem para o décimo ano, o mundo voltou a sorrir. A mudança de turma, a escolha de um agrupamento a pensar numa orientação profissional, os bons resultados escolares a brilharem mais do que nunca: como esquecer o 20 a latim que pôs toda a escola a soletrar o meu nome? Ou os 19 a informática e a português? Como perdoar a professora que considerou que a exposição da minha prova global de português seria perniciosa para mim, numa tentativa de evitar que o sucesso e a vaidade me subisse à cabeça? Foi neste cenário que me entreguei ao estudo para as Provas Nacionais. Eu iria para a Universidade. Ainda ninguém na família tinha seguido esse caminho. Era destemido ousar sonhar tão alto, mas era o primeiro ano de uma reforma escolar que abria as portas do ensino superior até aos filhos pobres das pequenas aldeias. Eu ia ser capaz, tinha de ser. E sim, tive bons resultados, a média estava acima da média do meu agrupamento e aquele 13-quase-14 a latim tinha o mesmo sabor do tal 20 histórico. Tinha o mundo nas minhas mãos e fiz asneira. Concorri apenas para cursos em Lisboa, não tinha possibilidades de arcar com despesas de viagem e alojamento para outras zonas do país, mas a media na capital era muito mais alta. Naquele domingo em Setembro percebi que quase todos os meus colegas tinham sido colocados em algum lado mas a possibilidade de eu ter entrado na Universidade era remota. As notas viam-se em jornais no domingo anterior mas teriam de ser confirmadas em sede distrital própria na segunda-feira seguinte. Nessa manhã, em Leiria, engoli amargamente o 1% que me impediu de entrar na faculdade que pisaria apenas no final de Outubro, já na segunda fase de apuramento. O meu mundo ruiu nessa manhã, pela primeira vez. E foi com amargura que trabalhei numa fábrica de calçado durante o resto do verão, com a certeza de teria de fazer todo o possível para sair daquela realidade mas sem saber se isso estaria ao meu alcance. Foi há 20 anos e, felizmente, não fiquei pela fábrica de sapatos. Fábrica essa que, mau sinal dos tempos, até já fechou.